segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Fénix















Percorro o asfalto de pés descalços,
é uma língua negra, vazia,
que me tinge de silêncios líquidos
e me enrola de dúvidas cheias de espinhos
como os catos que rareiam
neste solo de areia fina e pálida...

Caminho estrada fora...
o olhar preso na linha ilusória do horizonte...
as memórias cravadas no peito,
seladas em crostas de sangue seco...

Guardo cada pétala que encontro perdida 
neste mar de cimento compacto e sem vida...
Vou colhendo essas migalhas de sonho
que se soltaram daquela nuvem dourada,
a mesma que nos fez voar como pássaros de fogo
sobre o castelo encantado da eternidade!

Se caí, volto a levantar-me como a fénix que renasce das cinzas
para trepar essa corda que seguras do alto dessa nuvem
e devolver as pétalas perdidas do nosso jardim mágico!

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Presa dentro de mim

Escrevo-te num intervalo de luz intermitente,
analgésico da solidão escura e gelada 
que me desliza na pele nua em gotas de chuva ácida…

Agarro este pedaço de carvão ainda quente,
que saltou de uma fogueira adormecida,
para desenhar as palavras mudas 
que gritam cá dentro
como aves de rapina encarceradas
implorando céus de liberdade!

Observo as estrelas que te iluminam o corpo celeste,
perscrutando no firmamento o cometa 
que me libertará desta prisão interna feita de lágrimas!

sábado, 2 de novembro de 2013

Viúva negra
















Não quero mais ser a paleta vazia de cor, pálida,
nem um mero expositor de tintas em carne viva
à mercê dos tentáculos de um pincel vadio e moribundo,
autor das telas que me pintam os olhos de lágrimas...

Não quero mais ser o projetor de luz de um palco de sombras,
sem pele, suor, vozes e saliva,
pedaço de chão negro abandonado,
coberto com uma fina camada de pó cinza
e com um círculo luminoso ao centro apontado.

Não quero mais ser reclusa da minha teia,
mas antes deslizar nessa rede como uma viúva negra,
desfiando lençóis de água sobre o teu leito queimado pelo sol,
refrescando esse ardor que te consome em lume brando...

Inspiro os ventos glaciares e chamo a neblina das madrugadas
para dar à luz pétalas de gelo,
polidas pela erosão do granizo de Inverno, 
filamentos cristalinos que te estancam essa lava,
transformando-a no rio que me corre nas veias...

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Aguarelas

Aguarelas salgadas escorrem-me das pálpebras cansadas,
tingem-me o rosto de lágrimas prateadas, translúcidas,
cicatrizando as feridas deixadas pelo pincel de ponta larga e abrasiva
que me desenhava lábios cerrados e testas franzidas...

Procuro a tela despida, branca, vazia,
onde posso renascer com novas formas e cores,
onde me diluo nesse fluxo inicial que se esconde em cada poro,
e se esvai nos filamentos nervosos da carne em que tocas...

Abro os lábios para te receber lentamente,
saboreando-te os aromas que se erguem à lingua do meu ventre...
Envolvo-te na minha saliva transparente e aveludada,
enquanto danço e contraio repetitivamente,
em movimentos contínuos e vorazes que ardem em suor e sémen...
prendo-te mais ainda quando a minha fonte quente te acaricia a pele nua,
liberto-te por instantes para voltar a sorver esse suco,
néctar afrodisíaco de canela e gengibre 
com perfume a mar, sabor a terra e cor do fogo...
... aguarelas...



domingo, 1 de setembro de 2013

O pintor invisível















Escondes-te nessa clareira prateada de areia fina,
protegida por ciprestes altos e sobreiros frondosos,
guardiões do último pedaço de luz celeste 
que ainda sobrevive no manto de escuridão que cobre a terra...

Desenho-te as pegadas que tatuas enquanto caminhas,
absorvo-te o suspiro de alívio quando amanhece ou em noite de lua cheia,
mas não te conheço forma física ou cor de pele,
apenas uma mancha escura e ondulante que esvoaça 
projetada no círculo de terra clara e macia, sempre iluminada: 
de dia pelo sol, à noite pelas estrelas e pelo luar
e quando é preciso pelos pirilampos ou por uma fogueira...

Pendurada no ramo mais alto de um carvalho já consumido pelas sombras,
observo-te ao longe com a minha penugem de coruja branca:
os meus grandes olhos negros sabem que a tua missão é pintar o mundo!
Ofereço-te uma das minhas penas e uma paleta de tintas...
A água das chuvas e a seiva das plantas mas também o pólen das flores e as abelhas
serão os teus guias após o meu voo da despedida!

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Rio















Escutas o murmúrio da noite,
entre as ondas ralas de água doce
que desaguam nos meus olhos de lágrimas...
Bebes o luar nesse baloiço de prata,
que o vento sopra contra a tua corrente
e salpicas-me os lábios assim que atravessa um barco...
Sentada num dos teus braços de terra húmida,
estendo-te os pés descalços
enquanto observo-te o caminho até ao mar...

Não tens o sal marinho que beija o pôr-do-sol,
mas conheces o ventre que te deu vida!
És a língua que sacia montanhas e planícies,
viveiro de mares e oceanos.


quarta-feira, 10 de julho de 2013

Diário













Agarro-te esse traço curvo com que finalizas o meu nome,
a tinta escura que desliza da caneta
tinge-me a bainha negra
que se desprende do vestido de cetim violeta...

Reconheço-te esse contorno mais forte
que sublinha vogais abertas, sons exclamativos
e a sombra mais frágil e trémula retida nas entrelinhas,
quando hesitas, escreves e rabiscas traços inseguros,
que se desprendem e esvoaçam pelas páginas do teu livro...

Rasgo uma e outra folha completamente vazias
pálidas, despidas...
sem uma linha ou um risco indevido...
É uma ausência de ser, uma apatia profunda
que se abate sobre os meus olhos embaciados
como se o amanhã não pudesse nascer,
qual rebento de planta que não consegue desabrochar e dar flor,
como se o passado se desfizesse entre os dedos de uma criança
deslizando em grãos de areia fina e branca...

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Poema inacabado















Descanso o meu reflexo nesse espelho de luz salgada
que navega entre as duas margens de um corpo sem destino...
São os reinos do sol nascente e da lua cheia
que marcam a valsa das marés e dos ventos!
Bebo-te o orvalho da manhã e a espuma branca ao entardecer,
enquanto desbravas este caminho subterrâneo de água doce 
para desabrochares na boca quente que te faz renascer uma e outra vez...!

Mas esta sede de mar que estremece
cada nervo do meu ventre, cada poro da minha pele
faz-me planar sobre ti como uma águia insaciável pronta a caçar a sua presa...!

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Ser quem não sou


Na voracidade dos dias, procuro um sinal de eternidade,
um vestígio que refute a racionalidade do que é efémero
e desvenda uma lua cheia de impossíveis por realizar...

Nestes ínfimos grãos que deslizam invisíveis
por entre os dedos esguios,
procuro-me... procuro-te...
esse pedaço que se esvai instantaneamente
e me surpreende num regresso imprevisível,
sempre insuficiente...
É como as estrelas que brilham
mas não conseguem iluminar
ou os pirilampos tímidos
diante de um sol intenso de primavera!
É como aquele candeeiro de pé alto e imponente
mas gasto pela erosão dos invernos
ou como o vento demasiado fresco em dezembro
ou o bafo quente de um agosto vagaroso
que em vez de caminhar, rasteja,
escavando túneis debaixo da terra húmida...

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Ser quem sou

Ser quem sou, 
desejar o que tenho,
gostar do que vejo, do perfume da minha flor,
das raízes que a alimentam e da chuva que a hidrata...
... das palavras que me são ditas,
dos cumprimentos banais com que nos tocamos,
desconhecidos mas cúmplices,
porque todos nascemos do corpo de uma mulher,
fecundada pela virilidade de um homem...
Querer guardar as memórias que me escorrem das mãos em pequenos grãos...
Sentir falta do que me define e por vezes se desprende
como um pequeno ramo mais débil caindo de uma árvore frondosa...
Acordar debaixo dessa copa verdejante
e abraçar-me ao lençol macio em que me deito todas as noites...
Já o dia se vestiu de negro, é um tecido opaco mas brilhante...
Por uma luz semicircular desliza até ao meu rosto,
sinto-lhe a mão aveludada enxaguando-me as lágrimas quentes...
Este marejar que me ofusca e tortura 
a cada passo febril que calca a terra turva e fria...
Ouço-te... mas quem?
Se és a voz que me vibra na laringe!
Habitas-me!



sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Fluxo contínuo




















Torrente febril que derrete esta colina de neve,
num rastro quente de vapor que flutua,
mantém-me cativa nesta gruta de pedras vulcânicas…
enquanto me aqueces a alma sombria e a pele salgada…

Fui sereia do mar mas quero ser tua,
da nascente translúcida até à foz de cor púrpura...
Serei a ninfa de água doce que cuida do teu leito morno
e semeia cravos e tulipas nas margens fofas que te aconchegam!

És o meu par nesta dança serena que marca o compasso da brisa de leste...
Os teus lábios deslizam pelo contorno já ereto dos mamilos…
... são cerejas na tua boca...
... botões de rosa que te florescem nos dedos…
Temperas-me com a tua saliva agridoce e quente
até mergulhares na lava que brota do meu ventre!

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O segredo


Desenho-te curvas, reentrâncias húmidas,
nessa tela transparente onde me revejo nua…
São tuas estas mãos que te possuem
e este corpo inteiro que te circunda
como a brisa primaveril despertando-te
do sono profundo de Inverno…

Bebo-te a seiva que me escorre fluida e morna
em cada linha da pele invisível que me veste a alma.
Conheço-te o sabor a chuva e a terra queimada,
viajei nos teus movimentos perpétuos, curvilíneos,
bailarina que ama o sol mas seduz a lua!

Numa bipolaridade secreta acaricias-me o rosto cansado
enquanto deslizo para o teu colo sereno e verdejante!



sábado, 19 de janeiro de 2013

Menina do Sol



















Traças-me o corpo com essa invisível capa de cetim,
abraçando-me num sopro fresco de inverno pálido
que descreve telhados de neve e ramos despidos.
Mas o teu hálito escalda-me o ventre em labaredas,
libertando esse vapor quente e macio que derrete 
as pequenas estalactites que nascem em cada braço de ferro:
o portão do parque ou o arco sobre o caminho prateado,
noutra época verde de folhas de plátanos imponentes
que abrigavam rolas e esquilos, rebentos de morango e alecrim.

Procuro as horas, os dias e os meses, ininterruptamente
como se os devorasse à velocidade dos meus passos nus,
que correm sobre o asfalto de gelo escorregadio...
Mas o minuto demora-se nas quedas que me golpeiam os joelhos e as mãos...
O rosto aninha-se-me nos braços cruzados ao peito quase dormente,
enquanto imagino o regresso dos campos verdejantes 
com os roseirais e as laranjeiras selvagens
saciando-se junto da nascente de água morna e cristalina
que despertara da estação mais fria do ano.