quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Morcego
















Sucumbo assim que escurece 
e o violeta esmorece 
na penumbra de um crepúsculo que desistiu de ser
e se abandona à opacidade de um mar negro, espesso, impenetrável...

É quando regresso ao meu estado original...
Refugio-me num dos ramos daquele plátano velho,
sem folhas, mas forte e imponente,
capaz de aguentar a fúria repentina
de uma tempestade de vento mais violenta...
As raízes colaram-se ao asfalto,
às placas que seguram o chão que pisas
e alimentam a lava subterrânea...
É a árvore da vida que me suporta o peso mortal!

A pele despiu-se da luz aparente
que me aquecia a alma
e retornou à toca de onde brotou doente...
Cega, escura,
sigo-te pelo ruído dos passos,
sinto-te a respiração mais ofegante,
rodopio-te sem me conseguires ver...

É tudo tão fugaz, efémero...
Ao mais leve pestanejar desapareço,
mas tatuei-te o corpo com as minhas impressões digitais,
com a minha saliva, com o fogo que me lavra o ventre...
Despertas a represa de água quente
que ecoa na minha fonte,
libertando-me desta clausura
que me sufoca em estilhaços de vidro!

domingo, 4 de novembro de 2012

Foz do rio Ser



















Autor: Raul Nunes


No meu colo embalo tantas lágrimas
quanto as que correm naquele rio de águas mornas mas revoltas,
naquele leito doce mas de pedras afiadas
que arranham o pé mais inocente que a calca...
São espinhos como os das rosas de pétalas macias
ou como os dos catos e ouriços que temem o desconhecido...

Com os braços nas duas margens de lama e ervas daninhas,
baloiço esse sal que te escorre da alma
como cristais que se liquefazem em gotas de luz
e jorram uma chuva de açúcar sobre a minha pele salgada...
Recebo-te por fim com os lábios rubros já em flor
ondulas suavemente por entre montanhas de pinheiros e granito
até te ergueres decidido à boca de um azul celeste prestes a escurecer...
... estala o primeiro trovão... o vento canta mais forte... intensifica os graves...
É quando te entregas a esta foz que te dará um novo ser!

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Ser mulher



















Se me esquecesse de mim
do corpo em que me materializo
e me faço carne e cinzas,
não seria eu nem o meu espelho
mas um lago turvo onde me liquefazia...
... seria um Outro apático, indefinido,
incapaz de sentir dor ou alegria!

Se misturasse a transparência numa paleta 
com tinta vermelha, verde e azul,
novas cores nasceriam com aromas desconhecidos,
indecifráveis pelo verbo ou o substantivo da língua...
Só a tela vazia lhe sente o sabor e a intensidade do pigmento,
que em manchas de luz e sombra
despe o branco dessa inocência cândida, clara, inútil,
dando-lhe a beber a seiva quente 
que jorra do meu ventre!

Se me abandonasse neste voo fresco da manhã
que desperta as damas da noite 
recolhidas no perfume que emana das suas pétalas,
seria a cantiga de criança com que adormecia
num embalo de rosas doces e alecrim!

E só me tornaria mulher quando anoitecesse
e o oceano me resgatasse os sentidos em suspenso
neste emaranhado de fios invisíveis
que escravizam marionetas sem alma,
corpos fantasma que se arrastam no asfalto, 
seguindo essas mãos assassinas que manipulam inocentes!

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Concha prateada






















Quando a lua se despe sobre o mar,
as estrelas protegem essa pele nua e cristalina
diminuindo a intensidade com que iluminam a vigília noturna.
Apenas um feixe mínimo te acaricia a tez prateada
e esse longo cabelo negro que esvoaça sobre os seios claros...
O vento beija-te o ventre húmido, abraçando-te o corpo firme...
Danças, subindo e descendo num voo rasante sobre a água,
enquanto as gaivotas espreitam curiosas esse amor cósmico
que se desenha em constelações de rosas e tulipas...
 
E assim que te entregas à noite,
uma fina névoa desliza sobre o leito denso,
que ondula em espuma e sal sobre os rochedos
que se erguem do imenso areal agora em silêncio...
Não há vozes, nem pegadas inscritas à beira-mar,
mas escuto-te no interior desta concha prateada!


quinta-feira, 26 de julho de 2012

Incendiários















Tudo o que resta são cinzas
que serpenteiam nas encostas das montanhas,
outrora verdejantes e abrigo de lobos e raposas...
Copas e ramos que escondiam ninhos de cucos e perdizes
são apenas fotografias do que o fogo já consumiu,
memórias esmagadas pelo horizonte queimado
e a cortina de fumo que nos enclausura
numa terra sem estrelas e lua.

Aqui as fontes secaram,
mas as lágrimas vão escorrendo lentamente lá em cima,
pelas encostas cada vez menos geladas da Gronelândia,
empurrando o mar que vai engolindo o cimento do litoral,
tomando de assalto o espaço roubado à Vida Natural!

Parecemos suicidas,
porque insistimos em destruir a nossa casa...
Ou seremos loucos masoquistas
que se regozijam com o sofrimento da incerteza?


sábado, 14 de julho de 2012

Menino pobre



 


Sigo-te menino errante de cara escura...
A noite lava-te a alma com as estrelas e a lua,
expurga-te da fome e do frio,
enquanto te aconchega debaixo do seu manto
feito de sonhos entrelaçados em fitas de arco-íris!
 
O dia estala-te no rosto magro e anémico
mas nem o sol intenso de Verão devolve o bronzeado de outrora,
quando corrias de pé descalço à beira-mar,
saltando a espuma das ondas e pontapeando a água salgada...
Tinhas o mundo pela frente e a esperança dava-te asas:
parecias uma ave de rapina, astuta e determinada!
Mas roubaram-te esse dom que te guiava
quando caiste na armadilha da idade adulta
e percebeste que afinal não somos todos iguais...
 
Nasceste pobre e serás sempre pobre!

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Marcha


Sinto-te nua e despida
mancha amorfa que se dilata nas praças extensas,
arrastando os gritos, choros, lamentos e sonhos
de um arquétipo que afinal pode existir... basta crer!
Mas está longe destas mãos de ninguém
que agora empunham estacas de madeira
para elevar bem alta a voz que se contém cá dentro
diante dos líderes que se recolhem no mais vazio trono...

A estrada é larga e profunda,
o alcatrão confunde-se com a terra e a água...
Há espaço para mais indignados que não se curvam perante o medo
e que encaram de frente o vento que os empurra para trás
e as montanhas que nascem em frente como barreiras intransponíveis...

Depois desta jornada virá o sol e a nascente de água doce,
mas é preciso continuar a marcha!

domingo, 20 de maio de 2012

Entre dunas














Em cada poro respiro-te o perfume marinho
que ondula pela tua encosta de pedra,
mas polida pelas mãos de espuma branca
desse corpo salgado e imenso
sob a claridade do dia
e a vigília prateada da lua...

Ergues-te entre as dunas de areia macia,
sorvendo-me o licor de mel
que se destila em cada uma das minhas concavidades
de veludo e seda...

E quando o vento refresca esse sol quente de Primavera
começa a chover sobre a nudez que nos tinge a pele...
Ardemos sob esta água fria!
Enlaço-te uma e outra vez entre a foz do meu rio
até me alimentares de sémen e saliva!

domingo, 15 de abril de 2012

Regresso ao mar














Nesta lama escura,
mergulho a pele cansada
que me veste a alma
como se fosse um fantasma,
de olhos turvos, cerrados,
ombros descaídos,
carregando o peso invisível da gravidade,
e as pernas trémulas, ajoelhando-se,
a cada passo mais lento e fúnebre,
como se não aguentasse mais a respiração da vida...

Mas antes que a terra líquida me engula a cintura e o peito,
agarras-me as mãos e salto para o teu dorso fresco de maresia...
Vens do mar, das ondas azuis de espuma branca,
da areia fina e clara, do horizonte torrado de violeta...
Assim que regresso ao meu castelo de água volto a ser sereia.

domingo, 8 de abril de 2012

A denúncia de Günter Grass

O nobel a literatura Günter Grass quebrou o silêncio e denunciou o potencial nuclear de Israel. Agora é considerado "persona non grata" pelo povo judaico e está impedido de entrar naquele país.


















O QUE HÁ A DIZER

por Günter Grass [*]



Porque guardo silêncio, há demasiado tempo,
sobre o que é manifesto
e se utilizava em jogos de guerra
em que no fim, nós sobreviventes,
acabamos como meras notas de rodapé.

É o suposto direito a um ataque preventivo,
que poderá exterminar o povo iraniano,
conduzido ao júbilo
e organizado por um fanfarrão,
porque na sua jurisdição se suspeita
do fabrico de uma bomba atómica.


Mas por que me proibiram de falar
sobre esse outro país [Israel] onde há anos
– ainda que mantido em segredo – se dispõe de um crescente potencial nuclear,
que não está sujeito a qualquer controlo,
já que é inacessível a qualquer inspecção?


O silêncio geral sobre esse facto,
a que se sujeitou o meu próprio silêncio,
sinto-o como uma gravosa mentira
e coacção que ameaça castigar
quando não é respeitada:
“anti-semitismo” se chama a condenação.


Agora, contudo, porque o meu país,
acusado uma e outra vez, rotineiramente,
de crimes muito próprios,
sem quaisquer precedentes,
vai entregar a Israel outro submarino
cuja especialidade é dirigir ogivas aniquiladoras
para onde não ficou provada
a existência de uma única bomba,
se bem que se queira instituir o medo como prova… digo o que há a dizer.


Por que me calei até agora?
Porque acreditava que a minha origem,
marcada por um estigma inapagável,
me impedia de atribuir esse facto, como evidente,
ao país de Israel, ao qual estou unido
e quero continuar a estar.


Por que motivo só agora digo,
já velho e com a minha última tinta,
que Israel, potência nuclear, coloca em perigo
uma paz mundial já de si frágil?


Porque há que dizer
o que amanhã poderá ser demasiado tarde,
e porque – já suficientemente incriminados como alemães –
poderíamos ser cúmplices de um crime
que é previsível,
pelo que a nossa quota-parte de culpa
não poderia extinguir-se
com nenhuma das desculpas habituais.


Admito-o: não vou continuar a calar-me
porque estou farto
da hipocrisia do Ocidente;
é de esperar, além disso,
que muitos se libertem do silêncio,
exijam ao causante desse perigo visível
que renuncie ao uso da força
e insistam também para que os governos
de ambos os países permitam
o controlo permanente e sem entraves,
por parte de uma instância internacional,
do potencial nuclear israelense
e das instalações nucleares iranianas.


Só assim poderemos ajudar todos,
israelenses e palestinos,
mas também todos os seres humanos
que nessa região ocupada pela demência
vivem em conflito lado a lado,
odiando-se mutuamente,
e decididamente ajudar-nos também.



[*] Prémio Nobel de Literatura, autor de O tambor e A ratazana.


O original foi publicado no diário Süddeutsche Zeitung , assim como em The New York Times e no jornal italiano La Reppublica. A tradução para português encontra-se em Jornal de Negócios.


Este poema encontra-se em http://resistir.info

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Borboleta



















O perfume ácido da laranja
crava-se-me na pele rugosa...
os maxilares tensos fazem ranger os dentes,
trinco uma semente mais agreste
e o veneno destila-se na língua,
envolvendo-me a saliva e as papilas gustativas!
Lá fora o vento sopra quente,
batendo no vidro fosco que me circunda o rosto...
Ramos despidos, secos,
partem a cada rajada mais forte
e a minha carne estremece
entre os dentes da tua boca...
São brancos, alinhados,
cegam-me os olhos encharcados...
mas Neptuno emerge do mar revolto
e salva-me das tuas mandíbulas de sangue,
libertando-me... sou novamente borboleta e consigo voar!

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Lua de fogo sem palavras















Perdi as palavras e as que restam tropeçam-me na língua
onde me crescem silvas e musgo...
Procuro-as no baú secreto das memórias,
mas desmaio nesta lividez
que me sustenta a alma...

Fujo do vento gelado que me desabotoa a blusa,
os mamilos endurecem no arrepio que me sobe pela espinha,
mas por dentro as chamas consomem-me de febre,
asfixiam-me neste suor frio e doentio...

Corro estrada fora como se voasse nesse sopro de Leste
que estremece as águas do rio e os campos de trigo,
toco as chaminés e as nuvens
e lá em cima a lua de fogo que me enlouquece!

domingo, 8 de janeiro de 2012

Indizível















Visto o chão quente da marcha dura
do vento pesado que vos empurra
para o uivo sombrio do anoitecer...
Seguro a caminhada dorida e monocórdica
deste fluxo de sangue e nervos,
elevando os corpos salgados
pela montanha acidentada... granítica,
de onde escorre uma névoa ao longo dos cabelos de chuva!

E neste movimento perpétuo de marés,
estanco o tempo e o refluxo do amanhã,
como se no presente coubessem o sonho e o indizível!